Page 123 - Da Terra
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 Tanta coisa a acontecer e nós para aqui castrados da língua. Demoro-te na espera, és o açúcar

 do cigarro na borda dos lábios  ngidos pelo vinho. Tenho pena. A escola começa amanhã, as
 crianças  andam  ansiosas,  fazem-me  lembrar  o  primeiro  dia.  Falta-me  estômago  para

 memórias. Engordo a olhos vistos só de pensar que um dia o coração me doeu, que um dia
 certo formigueiro nos pulmões veio anunciar o cancro, que um dia na cama de um hospital ela
                                                    Por outras palavras, imagens diferentes do eu e do outro são con nuamente trocadas
 disse esvaída em lágrimas: sinto o bicho dentro de mim, sinto-o como se fosse uma aranha,
                                                    no mesmo e único lugar, que é o lugar de um dos intérpretes: eu que ouço, eu que
 sinto-o. Trazem-me mensagens às quais não respondo, falta-me saldo. E olho quem diante de   anoto, eu que relembro, eu que escrevo. E é aqui que quero chegar, a esta língua
 mim fala disfarçando a angús a que pesa entre cada um dos ombros. O corpo sente uma certa   castrada que só não se reduz ao efeito estéril do documento porque transporta em si ?
 pressão, uma coisa que empurra as pessoas para novas vagas de sofrimento. É dos prazos.
                                                    transportar no sen do de carregar ? a marca de água de um espelho. Os jovens de hoje
 Mas vamos por partes, não fique também o leitor castrado da língua. O espelho mostra-me
                                                    trabalham muito também, mas é mais com a cabeça. An gamente era tudo feito
 onde eu não estou, é um disposi vo que simultaneamente afirma e subverte o meu sen do
                                                    socialmente, agora é em solidão. An gamente os velhos contavam histórias, ou seja,
 de iden dade. É aqui que quero chegar, ao problema da iden dade. Olho-me ao espelho              homem e mulher não estão no mesmo lugar, mas é como se es vessem, porque, no

 e vejo-me engordar de memórias (o pão também conta, mas esse deixa dobras aromá cas,   fundo,  o  movimento  apenas  reproduz  o  facto  de  permanecerem  está cos.  E  há
 nada  que  ver  com  "lembras-te  como  éramos").  As  fotografias  registam  agradáveis
                                                    também aquela mulher, dizem que problemá ca, calada como um cepo velho, batendo
 fragmentos inodoros, deixam-nos castrados da língua à espera de um novo dia na escola,
                                                    nas coxas segundo um compasso interior ao qual não chegamos. Vou dar um exemplo
 rostos instantaneamente reavivados. Éramos meninos, comíamos um olho de terra por ano.
                                                    literário: Ulisses não permite qualquer desconstrução da iden dade porque reúne em
 Levávamos tudo à boca. A gente cantava nas vindimas e nas mondas do trigo. Há quem tenha   si todas as forças contrapostas. Termina com um monólogo de Mary Bloom, uma voz
 coiso para cantar, eu não. Eu tenho a língua castrada de correr pedras, há pés para que te   que é preciso ouvir como se es véssemos a jogar sopa de letras: "eu queria tanto que

 quero,  ata  cavalos.  Eu  fujo  destes  redemoinhos  de  tempo  na  cabeça  gasta.  Querem
                                                    alguém me escrevesse uma carta de amor", "eu queria adiantar o relógio para ficar
 transformar-me em ruína arqueológica, caco cultural exposto em museu, figura etnográfica
                                                    perto da hora", "eu sempre gostei de poesia", "eles todos escrevem sobre mulher na
 para entretenimento de curiosos. É isso, não é? Aqui num lar, centro de dia, casa de repouso.
                                                    poesia deles". A idade foi andando e isto tudo passando. A mulher problemá ca podia
 Dantes morria-se e pronto, agora esperamos, esperamos, esperamos. Isto não se poderem   chamar-se Mary Bloom ou Maria Belarmina e o compasso que lhe prime o gesto pode
 sentar a meu lado deixa-me desesperado de vergonha. São os vírus que andam por aí, comem   ser  uma  sucessão  de  imagens  em  busca  de  palavras,  um  acervo  sem  herdeiros,

 tudo em quanto tocam. E é nisto que chego a um homem e a uma mulher, saltando de lugar.
                                                    inalienável, alienante.





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